Por Gabriel Pinheiro

Mesa celebrada investigou a importância da poesia na vida e na obra dos convidados deste 5.º Flitabira

“Estou ao lado de dois amigos, de duas pessoas que eu gosto muito, que são uma espécie de farol”, Jeferson Tenório falou sobre a alegria em mediar essa conversa com Milton Hatoum e Conceição Evaristo, na noite deste sábado no 5.º Festival Literário Internacional de Itabira – Flitabira. Com o tema “Entre a margem e o centro: escritas de identidade e deslocamento”, a conversa foi permeada por muita poesia.

O mediador começou a conversa com poesia, lendo os versos de “Da calma e do silêncio”, um dos mais celebrados textos de Conceição Evaristo:

Caminhar para quê?

Deixem-me quedar,

deixem-me quieta,

na aparente inércia.

Nem todo viandante

anda estradas,

há mundos submersos

que só o silêncio

da poesia penetra.

“Considero esse um dos grandes poemas da poesia brasileira. Ele, inclusive, conversa com Drummond”, Jeferson destacou. Ele, então, perguntou aos convidados como é a convivência deles com a poesia.

“Antes de tudo, a poesia é emoção. Ela é uma certa dor também, contida nas letras. Como essa poesia transborda na minha prosa poética. Na construção dos meus textos, por mais que a prosa suponha uma contação, uma fala, mais movimento do que o poema, a prosa é um exercício da escrita que também exige concentração, silêncio, exige esse assuntar o mundo, assuntar a vida”, iniciou Conceição Evaristo. “Você tem que ficar desconcertado no meio da prosa. (…) O exercício de buscar a linguagem, de achar a linguagem que te satisfaça, é um exercício dolorido também, pois você não encontra a palavra logo.” A autora mineira discorreu sobre os artifícios de brincar com a linguagem e a influência da oralidade em seu texto.

Milton Hatoum falou sobre o início de sua escrita, quando, jovem, ganhou um prêmio de poesia. “Achei que me tornaria um poeta. (…) Eu ainda tentei, fui teimoso, publiquei um livrinho de poesia. (…) Só que eu descobri que não adianta você querer ser. Você é poeta. Eu não era poeta. Daí eu derivei para a prosa, sem deixar de ser um leitor da poesia. Eu achava que na prosa, no romance, eu poderia tentar, com mais humildade, algum sopro lírico.” Ele, então, citou seu romance “Relato de um certo oriente”. Em seguida, o escritor comentou sobre um exercício recente de poema, “O fim que se aproxima”, numa reflexão sobre um país fraturado por um governo anterior nocivo, pela destruição da Amazônia e pelos ataques aos povos indígenas:

Que triste pátria delida,

mais armada que amada:

traidora de riquezas e verdades.

Quando tudo for deserto,

o mundo ouvirá rugidos de fantasmas.

E todos vão escutar, numa agonia seca, o eco.

Não existirão mundos, novos ou velhos,

nem passado ou futuro.

No solo de cinzas:

o tempo-espaço vazio.

“A poesia ajuda muito o romancista”, Milton comentou. Ele, então, citou romances dotados de uma força poética muito grande, como “Lavoura arcaica”, de Raduan Nassar; “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa; e “Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector. “Tem momentos em que a prosa é inseparável da poesia.”

“Talvez essa profusão de poemas e poetas que aparecem na minha trilogia seja uma forma de mitigar a minha frustração”, concluiu. Jeferson respondeu a Milton dizendo se identificar muito com ele, pois também seria um poeta fracassado. “Vamos criar um clube dos poetas fracassados”, brincou Hatoum.

O mediador falou sobre os movimentos das águas (Oxum) e o da fabricação das próprias ferramentas (Ogum) na produção de Evaristo. “Onde é o encontro das águas com a Escrevivência? Em que momento você se deu conta de que precisava criar essa teoria para entender aquilo que você estava fazendo?”

A autora, então, comentou: “Como pensar a Escrevivência relacionada, imbricada, pensando num nascimento nas águas? Talvez porque as águas estiveram e estão sempre presentes nos povos africanos. Um mar sempre nos atravessou. Os rios sempre nos atravessaram”.

A escritora prosseguiu: “Pensar em Escrevivência também é pensar em águas reprimidas do passado. Uma história que tem a ver com a memória, com a memória das águas. A memória das águas dos povos africanos e afro-diaspóricos não é aquela do ‘Terra à vista!’ dos europeus. O mar, para os povos africanos, é um mar de sujeição”.

“O nosso rosto negro não cabe no espelho de Narciso. O espelho de Oxum, em determinados momentos, é uma arma de guerra. Quando Oxum se contempla, ela vê o inimigo por trás”, Conceição Evaristo refletiu. “As águas que nos batizaram enquanto povos colonizados não foram águas que nos libertaram. (…) Foi preciso que a gente criasse outras águas. Uma água que nos banhe da sujeira que nos deixaram.”

“Que bom que a literatura me permite todas essas invenções”, declarou Conceição ao fim de sua fala.

A partir de uma pergunta de Jeferson, Milton Hatoum discorreu sobre o processo de escrita dos três volumes de sua trilogia “O lugar mais sombrio” e o seu retrato da ditadura brasileira. “Eu tinha a minha vida, a minha experiência ainda garoto em Brasília. Fui detido duas vezes, mas não fui torturado como amigos meus foram.”

Ele falou, então, sobre amigos que se exilaram ou desapareceram e nunca mais foram encontrados. “Quando conversei com meus amigos, pedi cartas, diários daquele período, e eles me deram tudo. Foram muito generosos. Eu tinha, então, uma massa enorme de confissões, devaneios, escritos naquela época. Então, me entreguei a esse projeto de fazer essa trilogia inspirado nas memórias dos meus amigos e na minha experiência.”

“Toda essa memória voltou em flashes, pequenos insights. E eu fui contando essa desgraça. Uma trabalheira enorme”, ele confessou. “Tudo o que está aí aconteceu com uma parte da minha geração, com as pessoas com quem eu convivia. O terceiro volume é o livro da mãe. É o livro que me marcou mais. (…) É uma “Dança de enganos” porque tudo ao redor dela é um engano.”

“O que você indicaria pra gente poder fazer uma reflexão sobre o que está acontecendo em Gaza?”, Tenório perguntou a Hatoum. “Um livro do maior poeta da Palestina, Mahmoud Darwich, chamado ‘Memória para o esquecimento’, para quem gosta de poesia. Para quem gosta de romances caudalosos, tem um romance maravilhoso que conta a história do primeiro gueto da Palestina: ‘Meu nome é Adam’, de Elias Khoury. Ali você percebe a Escrevivência dele. É o primeiro volume de uma trilogia. Um romance com um quadro histórico forte e belíssimo. São indicações para quem quer conhecer a questão palestina a partir de uma literatura muito poderosa.”

Ao fim, Conceição Evaristo também indicou leituras: “Quando se fala em exílio, a gente pensa que alguns sujeitos, algumas coletividades são exiladas, passam também por um exílio diferenciado dentro do próprio país. Para pensar em exílio, pensar em genocídio, eu indicaria ‘O genocídio do negro brasileiro’, de Abdias do Nascimento, e ‘A dívida impagável’, de Denise Ferreira da Silva”.

“É impossível não pensar no Rio de Janeiro. Um genocídio que vai sendo aprimorado”, refletiu de maneira contundente Conceição Evaristo ao final da conversa. “A nossa violência é histórica. (…) Quando a gente vê um corpo tombado, o que aconteceu com aqueles corpos foi um tiro de misericórdia, porque eles já estavam morrendo há muito tempo. (…) Cada um já foi morto pela falta de perspectiva de vida. A pobreza pode ser um lugar epistêmico — você pode aprender e ensinar através dela —, mas só quando você a vence. A pobreza como lugar de interdição leva à violência, ao desespero, à confusão e, antes de tudo, à perda da dignidade. São sujeitos que tiveram suas dignidades machucadas desde o nascimento.”

“O sujeito já nasce fadado à morte. Então, aquilo que aconteceu no Rio de Janeiro foi um tiro de misericórdia”, concluiu. A autora, então, leu seu poema “Certidão de óbito”, num fim de conversa emocionante e amplamente aplaudido por todo o teatro:

Os ossos de nossos antepassados

colhem as nossas perenes lágrimas

pelos mortos de hoje.

 

Os olhos de nossos antepassados,

negras estrelas tingidas de sangue,

elevam-se das profundezas do tempo

cuidando de nossa dolorida memória.

 

A terra está coberta de valas

e, a qualquer descuido da vida,

a morte é certa.

A bala não erra o alvo; no escuro,

um corpo negro bambeia e dança.

A certidão de óbito, os antigos sabem,

veio lavrada desde os negreiros.

Sobre o 5.º Flitabira

O 5.º Flitabira é patrocinado pela Vale, via Lei Rouanet do Ministério da Cultura, e tem apoio da Prefeitura de Itabira. Com uma programação extensa, para todos os públicos e idades, o 5.º Flitabira promove debates literários, lançamentos de livros, contação de histórias para crianças, prêmio de redação e desenho, apresentações musicais e teatrais e oficinas, tudo ao redor de uma imensa e linda livraria. Criou também o “Flitabira da Gente”, dedicado aos empreendedores locais.

Serviço

5.º Festival Literário Internacional de Itabira – Flitabira

De 29 de outubro a 2 de novembro, quarta-feira a domingo

Entrada gratuita

Local: Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade e avenida lateral.

Toda a programação é transmitida on-line pelo Youtube @flitabira

Informações para a imprensa

imprensa@flitabira.com.br

Jozane Faleiro – 31 99204-6367

Laura Rossetti – 31 99277-3238

Letícia Finamore – 31 98252-2002