
Por Gabriel Pinheiro
Mesa reuniu Itamar Vieira Júnior, Morgana Kretzmann e Matheus Leitão, que refletiram sobre o fazer literário e o choque frente à violência policial contra a população negra no Rio de Janeiro
Na noite deste primeiro dia de 5.º Flitabira – Festival Literário Internacional de Itabira, uma mesa emocionante reuniu os escritores Itamar Vieira Júnior e Morgana Kretzmann, sob mediação de Matheus Leitão, com o tema “Terra, Água e o Passado como Encruzilhadas”, no Teatro da FCDDA.
Matheus Leitão abriu a conversa com um tema incontornável: o massacre realizado no Rio de Janeiro no dia de ontem. “Esse banho de sangue é uma atualização do pior da história do Brasil – da violência contra o povo negro por quase 400 anos, do genocídio que segue até os dias atuais.”
Matheus declarou que estava esperançoso após participar de um ato em homenagem a Vladimir Herzog – vítima de assassinato sob tortura pela ditadura brasileira –, no qual houve, pela primeira vez, um pedido de desculpas do Estado brasileiro à sua família, junto às famílias de Herzog, Rubens Paiva e outras vítimas da ditadura. “Tinha um cartaz durante esse ato que dizia: ‘A ditadura segue presente nas periferias’. É o que vimos no Rio de Janeiro.”
Itamar Vieira Júnior também refletiu sobre os acontecimentos no Rio. “É tão difícil falar no calor do acontecimento. Nós, escritores, muitas vezes precisamos do tempo para refletir, para pensar, elaborar sobre tudo isso. Mas, é claro, eu não sou apenas um escritor. Eu sou um cidadão, um brasileiro. (…) Ver aquela cena de terror que presenciamos ontem lança uma luz muito triste sobre a nossa própria história. O que aconteceu no Rio de Janeiro está acontecendo em muitas partes do país. (…) Isso nos coloca no limite da nossa humanidade”, destacou.
“Eu acho ‘genocídio’ uma palavra forte. Por isso é importante que ela seja evocada. Muitas vezes, quando pensamos em uma grande quantidade de mortos. Mas, no acumulado dos séculos, o que podemos dizer sobre essa população que é vítima da violência do Estado é que há um genocídio”, prosseguiu Itamar.
Matheus Leitão destacou o trabalho de denúncia ambiental de Morgana Kretzmann. “Eu fiquei pensando muito no seu trabalho, na denúncia da degradação do ambiente que ele realiza”, comentou. Morgana, então, abriu sua participação também falando sobre o choque da violência e da barbárie que se abate sobre o Rio de Janeiro. “É a necropolítica do Rio de Janeiro. É uma ação de marketing político pela morte. Pensando sobre isso, eu estava relendo algumas partes de “A rosa do povo”, livro de Drummond”. Na sequência, Morgana leu um trecho do poema “A flor e a náusea”: “Posso, sem armas, revoltar-me?/ Olhos sujos no relógio da torre:/ não, o tempo não chegou de completa justiça.”
A partir do comentário inicial de Matheus, Kretzmann falou sobre sua literatura de denúncia a crimes ambientais – sobretudo no romance “Água turva” –, destacando o papel do livro como metáfora de um cenário maior do Brasil, atravessado por corrupção e violência.
O mediador perguntou a Itamar sobre o lançamento de seu novo romance, “Coração sem medo”, que conclui sua “Trilogia da terra”: “Queria que você falasse do seu livro nesse lugar da esperança, de um Brasil diferente da nossa realidade”. Itamar, então, apresentou brevemente o enredo da obra. “A família central do romance, que é afetada pelos acontecimentos, tenta encontrar nesse caos, nessa violência, no meio dessa grande pergunta, o que nos resta de esperança, o que fica de esperança”, destacou.
“A literatura nos reserva essa possibilidade de restituir, mesmo que pela imaginação, algumas histórias que nos foram retiradas. O leitor vai descobrindo isso ao longo da narrativa. Foram as ausências que me levaram a escrever essas histórias”, prosseguiu. “A literatura pode, sim, ser um instrumento de esperança. Nós, quando escrevemos, colocamos esse corpo a serviço da escrita. Esse corpo é humano, feito de paixões, medo, tristeza, alegria. Quando o livro é lido, os leitores vão reimaginar essas histórias de maneira viva. Vão fazer com que essas histórias vivam outra vez.”
Matheus retomou a fala de Itamar sobre as ausências. “Eu, durante muito tempo, vivi com a ausência de um pedido de perdão pela violência perpetrada contra os meus pais na ditadura. Uma violência de Estado. Esse pedido de desculpas chegou no último sábado.” O pedido citado por Matheus foi feito pela primeira presidente mulher do Superior Tribunal Militar, Maria Elizabeth Rocha, em um ato em homenagem a Vladimir Herzog.
Morgana comentou sobre seu novo livro, um projeto infantojuvenil escrito ao lado do escritor Paulo Scott, “O Clube Verde e a Liga dos Solos”, e sobre as diferentes questões ligadas ao meio ambiente e à preservação presentes na obra. “Ouvindo o Itamar falar sobre o desterro, percebo como a Terra é uma questão muito importante pra mim. (…) A memória, inventada ou não, é muito fértil para os escritores. Minha literatura tenta tornar fértil essa terra que foi vivida pelos meus antepassados e que hoje não é mais nossa.”
Próximo à conclusão da conversa, Matheus Leitão refletiu sobre o apagamento da memória da escravização e da ditadura no contexto brasileiro. “Eu vejo as literaturas de vocês dois como uma forma de resistência, uma forma de recuperação da memória — de trazer essa memória à tona através da escrita e da palavra.”
Itamar Vieira Júnior citou Antonio Candido para falar sobre o poder da literatura: “A literatura é todas as expressões humanas com um toque poético que carrega sentidos e sentimentos capazes de tocar outras pessoas.” Em seguida, comentou: “Acho que a literatura dá conta de uma dimensão afetiva e subjetiva da vida humana. Para compreendermos o Brasil, é preciso conhecer minimamente a história desse país. Não dá para pensar o Brasil sem pensar na nossa experiência de colonialidade. Isso está na nossa maneira de nos relacionarmos com a natureza, como se não fizéssemos parte dela. O colonialismo reduziu tudo a coisas que devem ser exploradas, à maximização da riqueza”,complementou.
“O que aconteceu ontem no Rio de Janeiro é marca da colonização”, prosseguiu Itamar. “A literatura é capaz de comunicar de maneira muito forte a nossa humanidade.”
Morgana Kretzmann concluiu sua participação na noite falando sobre sua relação com o estado natal e sobre uma mudança de cenário no campo literário ali produzido. “Eu acho que hoje a gente vê, no Rio Grande do Sul, um número grande de autores negros, indígenas, mulheres, LGBT+. Finalmente eles estão retomando um espaço que sempre foi deles – escrevendo sobre seus territórios, sobre seus lugares”, pontuou. “Essa literatura de reparação está abrindo espaço”, finalizou.
“A literatura, quando toca a terra e a água, não fala apenas sobre o passado, mas fala daquilo que pulsa, que ainda pulsa”, refletiu o mediador ao fim da mesa. “Toda vez que saio dos festivais do Afonso, renovo a minha esperança. Nesses festivais, a gente encontra lugar para prosseguir com esperança. (…) Vamos lutar, vamos seguir em frente”, concluiu Leitão.
Sobre o 5.º Flitabira
O 5.º Flitabira é patrocinado pela Vale, via Lei Rouanet do Ministério da Cultura, e tem apoio da Prefeitura de Itabira. Com uma programação extensa, para todos os públicos e idades, o 5.º Flitabira promove debates literários, lançamentos de livros, contação de histórias para crianças, prêmio de redação, apresentações musicais e teatrais e oficinas, tudo ao redor de uma imensa e linda livraria. Criou também o “Flitabira da Gente”, dedicado aos empreendedores locais.
Serviço
5.º Festival Literário Internacional de Itabira – Flitabira
De 29 de outubro a 2 de novembro, quarta-feira a domingo
Entrada gratuita
Local: Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade e avenida lateral.
Toda a programação é transmitida online pelo Youtube @flitabira
Informações para a imprensa
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