“Eu moro no país do futebol” – assim disse Jamil Chade ao iniciar sua palestra ao lado de Eugênio Sávio. Quem não conhece Chade pode até pensar que o jornalista mora no Brasil – no entanto, ele mora em Genebra, na Suíça, e o que disse é, de certa forma, um fato. É na Suíça que estão localizadas as sedes da FIFA e da UEFA, instituições que regem alguns dos torneios mais importantes de futebol na Europa e no Mundo. Além de morar no país sede dessas organizações, Jamil também ressalta o fato de que a Suíça é um “paraíso fiscal” e que, por isso, o país é onde pessoas com grande poder aquisitivo (como é o caso de jogadores profissionais de futebol) costumam aplicar suas finanças.
Diante de sua vivência enquanto jornalista, Jamil Chade se deparou com conteúdo suficiente para escrever a obra “Política, Propina e Futebol”, publicada em 2015. No livro, Chade traz à tona casos de pagamento de propinas, contratos comerciais tendenciosos e dados que indicam que a Copa do Brasil foi a mais cara da história. Mesmo discursando sobre o poder político que o futebol dispõe, Jamil Chade não nega que assiste futebol – e que também torce, como bom apreciador do esporte.
Também dispondo do poder da linguagem para falar sobre o futebol no campo jornalístico, o fotógrafo Eugênio Sávio ilustrou a palestra ao lado de Chade com imagens que fez em sua carreira. Sávio resgatou, inclusive, a primeira fotografia que registrou em um estádio, quando tinha 15 anos de idade. O retrato mostra um lance entre Cruzeiro e Atlético Mineiro – um jogo clássico – pouco antes de um gol do time celeste. A partir do momento em que fez esse registro, Eugênio, cujo pai era fotógrafo, decidiu mergulhar no universo do fotojornalismo, em especial no esportivo.
O fotógrafo contou que seu desejo não era apenas de registrar imagens de lances de partidas de futebol, mas também capturar momentos inusitados e lados pouco vistos dentro e fora das quatro linhas. Seu acervo de retratos compreende a emoção como elemento de foco de suas lentes, apresentando ao observador um resultado no qual a tensão é a protagonista da fotografia.
Antes de encerrar a palestra com Eugênio Sávio, que foi inspirada pelo livro “Quando é dia de futebol”, do patrono do Flitabira, Carlos Drummond de Andrade, Jamil Chade leu a crônica “O inoportuno”, integrante da obra norteadora da mesa de debates. Confira, a seguir, o texto:
O inoportuno
— Que negócio é esse? Ninguém me atende?
A muito custo, atenderam; isto é, confessaram que não podiam atender, por causa do jogo com a Bulgária.
— Mas que é que eu tenho com o jogo com a Bulgária, façam-me o favor? E os senhores por acaso foram escalados para jogar?
O chefe da seção aproximou-se, apaziguador:
— Desculpe, cavalheiro. Queira voltar na quinta-feira, 14. Quinta-feira não haverá jogo, estaremos mais tranquilos.
— Mas prometeram que meu papel ficaria pronto hoje sem falta.
— Foi um lapso do funcionário que lhe prometeu tal coisa. Ele não se lembrou da Bulgária. O Brasil lutando com a Bulgária, o senhor quer que o nosso pessoal tenha cabeça fria para informar papéis?
— Perdão, o jogo vai ser logo mais, às quinze horas. É meio-dia, e já estão torcendo?
— Ah, meu caro senhor, não critique nossos bravos companheiros, que fizeram o sacrifício de vir à repartição trabalhar quando podiam ficar em casa ou na rua, participando da emoção do povo…
— Se vieram trabalhar, por que não trabalham?
— Porque não podem, ouviu? Porque não podem. O senhor está ficando impertinente. Aliás, disse logo de saída que não tinha nada com o jogo com a Bulgária! O Brasil em guerra — porque é uma verdadeira guerra, como acentuam os jornais — nos campos da Europa, e o senhor, indiferente, alienado, perguntando por um vago papel, uma coisinha individual, insignificante, em face dos interesses da pátria!
— Muito bem! Muito bem! — funcionários batiam palmas.
— Mas, perdão, eu… eu…
— Já sei que vai se desculpar. O momento não é para dissensões. O momento é de união nacional, cérebros e corações uníssonos. Vamos, cavalheiro, não perturbe a preparação espiritual dos meus colegas, que estão analisando a Seleção Búlgara e descobrindo meios de frustrar a marcação de Pelé. O senhor acha bem o 4-2-4 ou prefere o 4-3-3?
— Bem, eu… eu…
— Compreendo que não queira opinar. É muita responsabilidade. Eu aliás não forço opinião de ninguém. Esta algazarra que o senhor está vendo resulta da ampla liberdade de opinião com que se discute a formação do selecionado. Todos querem ajudar, por isso cada um tem sua ideia própria, que não se ajusta com a ideia do outro, mas o resultado é admirável. A unidade pela diversidade. Na hora da batalha, formamos a frente única.
— Está certo, mas será que, voltando na quinta-feira, eu encontro o meu papel pronto mesmo?
— Ah, o senhor é terrível, nem numa hora dessas esquece o seu papelzinho! Eu disse quinta-feira? Sim, certamente, pois é dia de folga no campeonato. Mas espere aí, com quatro jogos na quarta-feira, e o gasto de energia que isso determina, como é que eu posso garantir o seu papel para quinta-feira? Quer saber de uma coisa? Seja razoável, meu amigo, procure colaborar, procure ser bom brasileiro, volte em agosto, na segunda quinzena de agosto é melhor, depois de comemorarmos a conquista do Tri.
— E… se não conquistarmos?
— Não diga uma besteira dessas! Sai, azar! Vá-se embora, antes que eu perca a cabeça e…
Vozes indignadas:
— Fora! Fora!
O servente sobe na cadeira e comanda o coro:
— Bra-sil! Bra-sil! Bra-sil!
Está salva a honra da torcida, e o importuno retira-se precipitadamente.
SOBRE O FLITABIRA
Criado pelo jornalista Afonso Borges – que é também o idealizador do Festival Literário de Araxá (Fliaraxá) e do Sempre um Papo –, o Flitabira realizará sua terceira edição entre os dias 31 outubro e 5 de novembro de 2023, celebrando 121 anos de nascimento do poeta Carlos Drummond de Andrade. As atividades acontecem tanto de forma presencial, na Praça do Centenário, quanto on-line, pelo canal no YouTube do Festival.
O Flitabira tem patrocínio do Instituto Cultural Vale, via Lei de Incentivo à Cultura, a Lei Rouanet, do Ministério da Cultura, com o apoio da Prefeitura de Itabira e União Brasileira de Escritores – UBE.
INSTITUTO CULTURAL VALE
O Instituto Cultural Vale parte do princípio de que viver a cultura possibilita às pessoas ampliarem sua visão de mundo e criarem novas perspectivas de futuro. Tem um importante papel na transformação social e busca democratizar o acesso, fomentar a arte, a cultura, o conhecimento e a difusão de diversas expressões artísticas do nosso país, ao mesmo tempo em que contribui para o fortalecimento da economia criativa. Nos anos 2020-2022, o Instituto Cultural Vale patrocinou mais de 600 projetos em mais de 24 estados e no Distrito Federal. Dentre eles, uma rede de espaços culturais próprios, patrocinados via Lei Federal de Incentivo à Cultura, com visitação gratuita, identidade e vocação únicas: Memorial Minas Gerais Vale (MG), Museu Vale (ES), Centro Cultural Vale Maranhão (MA) e Casa da Cultura de Canaã dos Carajás (PA). Onde tem Cultura, a Vale está. Visite o site do Instituto Cultural Vale: institutoculturalvale.org
SERVIÇO:
III Flitabira – Festival Literário Internacional de Itabira
De 31 de outubro a 5 de novembro
Local: Praça do Centenário (Rua Maj. Lage, 121 – Centro Histórico)
Informações: www.flitabira.com.br
Informações para a imprensa: info@flitabira.com.br