O texto a seguir foi publicado originalmente no portal português Jornal de Letras.
Itabira é uma cidade no interior de Minas Gerais, onde uma montanha inteira desapareceu diante do olhar de Carlos Drummond de Andrade. O olhar de Drummond, aliás, perdura. Diria que jamais a cidade se livrará de seu modo de ver, o modo como falou da terra em que nasceu nos seus poemas. Verso a verso, como pedra a pedra, a cidade e sua paisagem está construída nos livros e não é possível chegar ali sem pensar no caminho, na pedra que havia no meio do caminho, na montanha que foi quebrada pouco a pouco, até ter tanto de fundura quanto tinha de alto, para seguir no maior trem do mundo que sumia com aquela paisagem vendida para o Japão ou para o Canadá.
Da casa de Drummond vemos onde não está mais a montanha, o Pico do Cauê. Assomamos às janelas e a pergunta que se faz é a de saber onde era exactamente o pico que ele cantou. Onde já não é. Dizemos: ali não é o pico. Imaginamos como seria gigante, imperando sobre a cidade e a casa, um colosso de ferro. Tudo em Itabira é sobre o ferro e a grande exploração erode cada canto possível para colocar no trem, essa “esteira”, como lhe chama Ailton Krenak. Eu pude vê-lo. É infindável. Acompanhei-o por um tempo mas não dei conta nem do seu início nem do seu fim. É de verdade um bicho em movimento lento que carrega vagões depois de vagões repletos de minério, que é o mesmo que dizer: montanhas e mais montanhas dali se derrubam para o Japão ou o Canadá.
No passado dia 1 de novembro, a coincidir com os 122 anos do nascimento de Drummond, aconteceu mais um Flitabira, pelas mãos de Afonso Borges, Sérgio Abranches, Bianca Santana, Tom Farias, Leo Cunha e Sandra Duarte. O evento, que revoluciona a cidade, encontra um acolhimento admirável por parte da população. É Krenak que diz que Drummond, por ser poeta, teve a sensibilidade do indígena, e lastimou sua terra e sua natureza como os povos da floresta. Ele entendeu que o negócio devora o mundo. O Flitabira encontrou mil oportunidades de propor equilíbrios e sensatez. O povo precisa do negócio, precisa sobretudo que o negócio reverta a seu favor, e precisa da terra limpa, fértil, segura, habitável.
Escutar gente como Tamara Klink, Conceição Evaristo ou Geni Núnez é repensar o mundo. Voltar a começar o que por tantas vias parece ter apenas cultura de fim. Ver como Itamar Vieira Júnior ou Paulo Scot debatem o Brasil de hoje, que é um país ao centro do sustento do planeta, é importante. O Brasil não é apenas um agente da contemporaneidade, ele carrega o pulmão absoluto da Terra, e ao pensar-se ele pensa toda a humanidade. Não há modo de retirar de todas as conversas a ideia de que mandar no Brasil é mandar no futuro de todos os povos. No lugar de Drummond, que nos deixou a ironia mas também a nostalgia de ver tudo partir, a pedra e as pessoas, um econtro de escritores não podia deixar de ser sobretudo o convite a um exército pelo ambiente e contra a destruíção climática.
Sei bem que gostamos sempre de colocar o escritor no lugar livre de não ser senão por sua obra. Mas no país onde tão bem se vê o fim do mundo talvez seja absolutamente indecente que o escritor não se torne um ativista, alguém cuja voz pública é usada pela consciência clara de que temos de sobreviver, todos, em paridade, sem exclusão. Como escrever poesia diante do fim do mundo? É a pergunta. Não é depois de Auschwitz, não é depois da matança dos povos negros e indígenas. É já com a extrema consciência do depois de nós. Tudo no Brasil convida à consciência do depois de nós. Não sobrará ninguém para saber de Drummond nem de Brahms. Não se saberá mais de Rodin, a não ser pelos bichos, talvez só baratas, que lhe passem por cima das obras a caminho de suas fomes. Quem sabe não pressentem nas patas que pisam uma pedra educada? Uma estranha pedra que pode ser mais amável ou mais amarga, porque lembra um inimigo que finalmente se venceu.
Portugal, de corpo pequeno, metido em fogos de todos os verões, talvez possa pensar que não lhe compete salvar o mundo. Estou cada vez mais convencido de que sim. Compete a cada um de nós. Com ou sem livros. Compete tudo.