O começo da tarde deste sábado, 4 de novembro, no Flitabira foi de uma intensa troca de vivências e saberes por parte dos participantes da mesa “Áporo”, com Alexandre Amaro, professor, pesquisador, mestre em Literatura Brasileira e Doutor em Estudos de Linguagens; e Kakay, advogado criminalista, colaborador da Comissão de Direitos Humanos da OAB de Brasília, fundador do Movimento Anti-terrorismo Penal e membro-fundador do Instituo de Garantias Penais. Mediada pela Promotora de Justiça no Ministério Público da Bahia e escritora, Lívia Sant’Anna Vaz, a conversa começou com a intenção de descobrir de que maneira a literatura pode influenciar o direito para se construir justiça, como bem dito pela mediadora.
Para iniciar a mesa, Sant’Anna Vaz leu o poema drummondiano que inspirou esse encontro. “Um inseto cava / cava sem alarme / perfurando a terra / sem achar escape./ Que fazer, exausto, / em país bloqueado, / enlace de noite / raiz e minério? / Eis que o labirinto
(oh razão, mistério) / presto se desata: / em verde, sozinha, / antieuclidiana, / uma orquídea forma-se”. Com base na poesia, ela provoca os participantes sobre como fazer brotar dos escombros da realidade atual do país, a orquídea de refundação da democracia.
“Esse poema nos traz uma imagem que remete ao pensamento de que, a despeito de toda dureza e secura, a flor nasce no asfalto. Se a gente começa por essa metáfora, vemos ela como algo forte na obra de Drummond e para a discussão de hoje. Precisamos imaginar como a literatura pode ser um instrumento de fazer brotar coisas em um ambiente absolutamente refratário à arte, à sensibilidade e à comunhão”, começou respondendo Alexandre Amaro.
Kakay fez questão de falar sobre sua intimidade com a literatura. “Acho que eu sou o escaravelho desse poema, pois fico fuçando para tentar chegar, de alguma forma, a uma esperança no Direito. Eu só fiz advocacia porque eu não consegui ser poeta. De certa forma, Drummond me desanimou, quando ele escreveu que ‘a poesia é um negócio de grande responsabilidade. Não considero honesto rotular-se de poeta quem verseja sobre dor de cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com forças líricas do mundo’. Senti que eu não tinha rigorismo suficiente”, revelou.
Realidade do sistema penal
Lívia Sant’Anna Vaz trouxe à tona, depois de citado por Kakay, como a luta das pessoas negras no país vem sendo exaustiva. “A gente está falando de um país que nos mata, cotidianamente, de forma física e simbólica. É preciso que o país inteiro se engaje nesse compromisso de democracia e igualdade. Não podemos continuar tratando a promoção de igualdade racial e de gênero como uma pauta identitária”.
Ela pediu, então, que Alexandre Amaro contasse sobre as pessoas que ele viu nos ambientes prisionais brasileiros, por ser o tema de seu Doutorado. “Eu aceitei participar de um trabalho voluntário que chamava-se “Rodas de Leitura”, nos presídios. O impacto que eu tive no primeiro dia foi brutal. Eu só vi jovens pretos. Era um ambiente de absoluta opressão. Eu vi um encarceramento em massa”, relembrou.
A mediadora lembrou, com dados históricos, como o direito penal e o sistema prisional vão funcionando conforme os interesses de continuar marginalizando determinados grupos. Daí veio a questão: resolve a prisão? Uma dúvida que Kakay respondeu categoricamente: não. “Quem coordena as prisões no Brasil são os grandes chefes do crime organizado. E esses meninos que vão para lá servem como soldados. Isso vai continuar se não tivermos a coragem de discutir a descriminalização da droga, por exemplo”.
O advogado ainda citou experiências e vivências, como criminalista, que marcaram a história do judiciário brasileira, como a defesa da presunção de inocência do atual presidente Lula, à época em que estava preso. Livia Vaz aproveitou para falar sobre a dificuldade do direito de dialogar com outros saberes e perguntou a Alexandre Amaro sobre como a literatura é usada para promover justiça no ambiente penal. “Projetos de remissão de pena pela leitura são revolucionários, pois mexem na dureza que o direito tem. Hoje, para cada livro lido, são quatro dias a menos de pena, com um total de 12 obras por ano. Antonio Candido dizia que a literatura é um direito como qualquer outro que salva a nossa estrutura emocional”, frisou.
Emoção à flor da pele
Ao lembrar como começaram suas pesquisas para doutorado, Alexandre Amaro se emocionou e contagiou Kakay que confessou, entre lágrimas, o quanto esse estudo é relevante para que as pessoas comecem a pensar um pouco mais sobre a realidade carcerária. “Nem quando os Bolsonaros estiverem presos, bandido bom vai ser bandido morto”.
Livia Sant’Anna Vaz quis saber, na sequência, o quanto a poesia é libertadora para o criminalista. “Ela serve para a gente fugir da dureza. A advocacia criminal pega a pessoa no momento de maior fragilidade dela. Eu advogo muito para crimes midiáticos, onde a imprensa já faz o pré-julgamento. Quando eu estou fazendo uma defesa, muitas vezes, os poemas vêm à mente. E o juiz é humano também. Então, colocar o poema, de forma técnica, num julgamento, é uma ousadia que quebra essa dureza”.
Instigados pelo assunto e pela fluidez da conversa entre os três participantes da mesa, o público presente fez uma série de perguntas. Houve uma intensa troca de vivências entre plateia e participantes, inclusive com comentários e perguntas de pessoas como João Candido Portinari; o prefeito de Itabira, Marco Antônio Lage; a escritora Silvana Gontijo; o neto de Graciliano Ramos, Ricardo Ramos Filho. Temas como o uso de textos religiosos na perspectiva dos projetos de remissão de pena; injustiça e pré-julgamento dos agentes de segurança e do judiciário; o diálogo do direito com outras formas de arte e comunicação; entre outros.
Livia Sant’Anna Vaz encerrou a mesa com uma sugestão: mais mesas de poesia. “Queria muito que a gente pensasse também nos poetas negros. E vou encerrar com um trecho de um poema do Luiz Gama: ‘Amo o pobre, deixo o rico, / Vivo como o Tico-tico; / Não me envolvo em torvelinho, / Vivo só no meu cantinho: / Da grandeza sempre longe, / Como vive o pobre monge. / Tenho mui poucos amigos, / Porém bons, que são antigos, / Fujo sempre à hipocrisia, / À sandice, à fidalguia; / Das manadas de Barões? / Anjo Bento, antes trovões. / Faço versos, não sou vate, / Digo muito disparate, / Mas só rendo obediência / À virtude, à inteligência: / Não tolero o magistrado, / Que do brio descuidado, / Vende a lei, trai a justiça / — Faz a todos injustiça — / Com rigor deprime o pobre / Presta abrigo ao rico, ao nobre, / E só acha horrendo crime / No mendigo, que deprime”.
SOBRE O FLITABIRA
Criado pelo jornalista Afonso Borges – que é também o idealizador do Festival Literário de Araxá (Fliaraxá) e do Sempre um Papo –, o Flitabira realizará sua terceira edição entre os dias 31 outubro e 5 de novembro de 2023, celebrando 121 anos de nascimento do poeta Carlos Drummond de Andrade. As atividades acontecem tanto de forma presencial, na Praça do Centenário, quanto on-line, pelo canal no YouTube do Festival.
O Flitabira tem patrocínio do Instituto Cultural Vale, via Lei de Incentivo à Cultura, a Lei Rouanet, do Ministério da Cultura, com o apoio da Prefeitura de Itabira e União Brasileira de Escritores – UBE.
INSTITUTO CULTURAL VALE
O Instituto Cultural Vale parte do princípio de que viver a cultura possibilita às pessoas ampliarem sua visão de mundo e criarem novas perspectivas de futuro. Tem um importante papel na transformação social e busca democratizar o acesso, fomentar a arte, a cultura, o conhecimento e a difusão de diversas expressões artísticas do nosso país, ao mesmo tempo em que contribui para o fortalecimento da economia criativa. Nos anos 2020-2022, o Instituto Cultural Vale patrocinou mais de 600 projetos em mais de 24 estados e no Distrito Federal. Dentre eles, uma rede de espaços culturais próprios, patrocinados via Lei Federal de Incentivo à Cultura, com visitação gratuita, identidade e vocação únicas: Memorial Minas Gerais Vale (MG), Museu Vale (ES), Centro Cultural Vale Maranhão (MA) e Casa da Cultura de Canaã dos Carajás (PA). Onde tem Cultura, a Vale está. Visite o site do Instituto Cultural Vale: institutoculturalvale.org
SERVIÇO:
III Flitabira – Festival Literário Internacional de Itabira
De 31 de outubro a 5 de novembro
Local: Praça do Centenário (Rua Maj. Lage, 121 – Centro Histórico)
Informações: www.flitabira.com.br
Informações para a imprensa: info@flitabira.com.br