O texto a seguir foi publicado originalmente no portal português Notícias Magazine

Desde há anos que os encontros de escritores no Brasil se formam no sentido da cidadania para a literatura. Quero dizer, é a partir da fracturante cidadania que se discutem os livros e, até certo ponto, se legitimam. Dificilmente as conversas se atêm às questões puramente literárias. O país, urgente na dianteira do que acontece ao Mundo, não permite ingenuidade nem distracção. Tudo é de verdade urgente. O povo inteiro se levantou e o povo inteiro não compactua mais com o que era até há pouco convencionado. Acabou a submissão muda. As vozes, todas as vozes, são presentes. Não creio que se possam voltar a calar.

Hoje, dialogar é obrigatoriamente encontrar um modo de estar com pares que chegam de realidades absolutamente distintas. Autores que afirmam suas realidades quilombolas, a negritude, a origem indígena, a questão de género, desde logo a questão feminina, todas as diversidades se tornam frontais e não se admite evento algum sem essa representação. A identidade de cada um é tão central no Brasil de hoje que todas as conversas acabam por ser sobre identidade. Tudo tem que ver com definir e exigir respeito, direito, memória e futuro. Exigir lugar, quero dizer, terra e legitimidade para sobreviver.

Tenho estado em eventos vários e nunca como agora senti tanto a presença necessária de pessoas que me são distintas em infinitos sentidos. E devo dizer que maravilha me tem causado escutar acerca de comunidades que apenas imagino, ou que palidamente imagino. Tem-me impressionado escutar figuras como Tamara Klink, que no alto dos seus 27 anos de idade nos ensina o que é ser mulher e domar a adversidade sem piedade de si mesma, apenas resiliência e puro conhecimento. Geni Núnez, do povo guarani, erudita, poeta, figura profundamente inspiradora que nos traz a sapiência límpida dos indígenas. Conceição Evaristo ou Teresa Cárdenas, que nos mostram o quanto a negritude se faz contra um preconceito dominante que teima em não fraquejar nem diante dos maiores talentos. Airton Souza, do recôndito do Pará, falando dos homens de Serra Pelada e de como amam ou como morrem.

Todos lemos porque nos importam realidades surpreendentes. Lemos para transcender de nosso caso. E o que se torna precioso no Brasil literário de agora é que vem juntando ao talento a originalidade do discurso. Ou seja, não se trata de escutar a voz dominante a especular sobre a universalidade das pessoas e dos assuntos. Trata-se de ouvir cada assunto pela voz de quem o experimenta. É como reconhecer o domínio de cada um, o lugar de cada um, o jeito como a origem se torna inevitável por todas as razões.